quinta-feira, 17 de março de 2022

A evolução da NOTAÇÃO MUSICAL



Uma viagem no tempo através de vinte e cinco séculos de escrita musical

A notação musical ocidental, tal como a percebemos hoje, com suas figuras rítmicas e indicações de expressão escritas em um pentagrama, é o resultado de milênios de especulações, tentativas e erros, usos e costumes e reflexão de teóricos e compositores sobre essa difícil questão: “como registrar através da escrita os sons musicais?”

Os registros mais antigos remontam à Grécia e são a base desse desenvolvimento que iria culminar na partitura moderna, estabelecida na escrita musical do século XIX.

O fato da música ocidental ser registrada graficamente permitiu o desenvolvimento da polifonia, de modo que os compositores pudessem se debruçar sobre o legado dos mestres antigos para estudar a fundo suas práticas composicionais.

As formas de notação musical ou, mais precisamente, “sinalização musical” mais antigas são as técnicas quironômicas, que eram sinais manuais indicados por um dos músicos e que descreviam as curvas melódicas e ornamentos, uma técnica que se desenvolveu nas tradições que não tinham notação musical escrita como, por exemplo, o Egito faraônico, a música indiana (cantos védicos), a música judaica e os cantos bizantinos e romanos. Cabe ressaltar que tais sistemas eram formas de sinalização, não eram escritos.

A grafia musical, de fato, teve seu primórdio na notação alfabética grega, já existente desde 500 a.C. Os chineses tinham um sistema por volta do séc. III a.C., mas foi na notação grega que a escrita musical ocidental começou a se desenvolver.

Para tanto, analisaremos alguns dos exemplos de registros de escrita musical mais antigos da Humanidade:



Este é simplesmente o registro de escrita musical mais antigo da Humanidade. Um documento de praticamente 2500 anos que sobreviveu ao tempo.

Este texto grego em papiro, escrito por volta de 200 a.C. em Hermópolis, Egito, tem sete linhas de escrita contendo partes dos versos 338–344 do primeiro refrão da tragédia “Orestes”, composta em 408 a.C. por Eurípides (480 a.C. — 406 a.C.).

A peça conta a história de Orestes, que assassina sua mãe Clitemnestra para vingar a morte de seu pai, Agamenon, e é perseguido pelas Fúrias por causa deste ato.

Além da passagem de um canto coral (“stasimon”, ou seja, uma ode cantada com o coro imóvel posicionado na zona semicircular entre o palco e a bancada dos espectadores chamada “orquestra”), o fragmento contém símbolos vocais e instrumentais escritos acima das linhas das letras da música.



Embora muita coisa sobre a música dos antigos gregos permaneça desconhecida, a partir do estudo desta notação os pesquisadores puderam reconstruir como o refrão poderia ter sido tocado e cantado. O papiro, que foi recuperado da cartonagem de uma múmia no fim do século XIX, pertence à coleção de papiros da Biblioteca Nacional Austríaca.

A letra diz:

“Ó deusas iradas que fendeis os céus
buscando vingança pelo crime,
imploramo-vos que livreis o filho de Agamémnon da sua fúria cega […] Choramos por este mancebo. A ventura é fugaz entre os mortais.
Sobre ele se abatem o luto e a angústia,
qual súbito golpe de vento sobre uma chalupa,
e ele naufraga nos mares revoltos.”







 













































É mais recente que o Coro de Orestes, porém é o mais antigo registro completo de música escrita. O texto e a música estão inscritos numa estela ou pedra funerária (v. foto) encontrada em Aidine, na Turquia, próximo de Trales, e datam, aproximadamente, do século I d. C.

A canção de Seikilos teve especial interesse para os historiadores devido à clareza da sua notação rítmica.

As notas sem sinais rítmicos por cima das letras do alfabeto equivalem a uma unidade de duração (chronos protos); o traço horizontal indica um diseme, equivalente a dois tempos, e o sinal horizontal com um prolongamento vertical do lado direito é um triseme, equivalente a três tempos. Cada verso tem doze tempos.

Hoson zés, pháinou
Medén hólos sý lýpou
Pros olígon estí to zén
To télos ho khrónos apaitéi

(Enquanto viveres, brilha
E de todo não te aflijas
A vida é curta
E o tempo cobra suas dívidas)

 







 












São fragmentos de dois hinos a Apolo escritos em 138a.C. e 128 a.C. em ocasião do Festival Pítico, que era realizado uma vez a cada dez anos, e são os mais antigos vestígios de música escrita do mundo ocidental cujo compositor é conhecido pelo nome. Foram encontrados em 1893, ambos inscritos em fragmentos de pedra (v. foto) ao sul da parede externa do tesouro ateniense em Delfos.

Por muito tempo acreditou-se que o compositor do primeiro hino era um ateniense, uma vez que o título da inscrição indicando o nome do compositor está danificado e difícil de ler. No entanto, a leitura atenta dessa inscrição mostra que ela não se refere ao gentílico “Athenaîos” (de Atenas), mas sim a um nome próprio: “Athénaios Athenaíou” (Athenios filho de Athenios).

O nome do compositor do segundo hino délfico também sobreviveu: Limenios, filho de Thoinos, um ateniense.



Sob grande influência do sistema grego, o sistema ecfonético, com raiz no aramaico, era usado para notar as inflexões quase-melódicas das recitações dos antigos cantos litúrgicos medievais sob os textos bíblicos hebraicos no séc. VI d.C., na música das igrejas síria, armênia e outras no Oriente, assim como na sinagoga (onde o atual sistema de notação dele deriva).

Registros antigos de escrita neumática datam do séc. IX, na abadia de St. Gall, na atual Suíça. Dois séculos depois, os neumas eram usados na Igreja Oriental.










No Ocidente, Guido D’Arezzo (992–1050) propôs uma série de sílabas (ut, re, mi, fa, sol, la) para ajudar os cantores a memorizarem a seqüência de tons e meios-tons das escalas. Tais sílabas derivam do Hino a São João “Ut queant laxis”, no qual a nota inicial de cada frase corresponde às silabas do texto.







O monge italiano também já desenvolvia um sistema de notação que considerava a pauta de quatro linha então usada, associando-a, através de letras, às notas fá, dó e, por vezes, sol (F, C e G), letras que acabaram dando origem às modernas claves.

Uma característica importante da escrita guidoniana é o uso de linhas coloridas para assinalar a altura dos sons (amarela para Dó, vermelha para Fá) e que facilitava a leitura à primeira vista. Como as partituras eram copiadas à mão, as partituras coloridas eram comuns na Idade Média. Infelizmente, o uso de cores caiu em desuso, talvez pela impossibilidade de se usar cores na prensa de tipos móveis mais antiga, inventada por Johannes Guttemberg por volta de 1450.

















Durante o séc. XV, o sistema de notação com notas pretas gradualmente cedeu lugar a um sistema em que eram usadas notas brancas, basicamente como hoje, com a notação rítmica mensural, que determinava uma divisão binária ou ternária entre os sucessivos valores das notas.










“Qui habitat in adjutorio altissimi”, cânone a 24 vozes (!!!) de Josquin Desprez (c.1450–1521) em notação mensural branca, já incorporados o pentagrama de cinco linhas e a clave de dó na primeira linha.

A escrita de Johann Sebastian Bach (1685–1750) já é praticamente a mesma da modernidade, entretanto não há indicações de dinâmica (fortepiano, etc.).

Manuscrito da Invenção 1 - BWV 772, de J.S. Bach

Apesar dos sinais de dinâmica já serem utilizados desde o séc. XVI, é a partir de Hadyn, Mozart e Beethoven que eles vão sendo incorporados à escrita de maneira mais sistemática, até que a dialética entre a determinação dos parâmetros musicais e a inteligibilidade das partituras atinge seu ponto de equilíbrio, já no Romantismo.




No séc. XX, com o serialismo integral, em que eram atribuídas a cada nota uma dinâmica e um modo de ataque diferentes, a escrita musical chegou num ponto em que essa hiper-determinação dos parâmetros sonoros, de fato, surtiu efeito contrário: buscando determinar cada aspecto da obra, as partituras tornaram-se “sujas”, difíceis de ler e impossíveis de serem interpretadas com exatidão.









Trecho de “Kontrapunkte”, de Karlheinz Stockhausen (1928–2007)

Com as novas técnicas composicionais propostas, particularmente as especulações relacionadas à música eletrônica, houve a necessidade de se formular outras maneiras de escrita musical, incorporando grafismos e símbolos não utilizados até então na escrita tonal.









Excerto da partitura de “Metastasis”, obra orquestral do compositor grego Iannis Xenakis (1922–2001)

A notação moderna é o resultado de séculos de desenvolvimento e especulações acerca dessa grande questão: “como escrever sons musicais abstratos?” Parece simples, vendo a partir dos dias atuais, mas tal questão levou séculos para ser aperfeiçoada. Ora, a fala contém fonemas que unem-se para formar as palavras que, por sua vez, formam sentenças que têm um significado concreto. Criar uma maneira de escrever sons abstratos, com suas minúcias de entonação melódica e rítmica, não foi nada fácil.

Há uma relação histórica entre o desenvolvimento da escrita musical no Ocidente e as técnicas composicionais utilizadas pelos compositores, a fabricação dos instrumentos, o tamanho do grupo orquestral, o desenvolvimento do contraponto e da harmonia, além da óbvia possibilidade de preservação das obras. Foi um processo histórico que durou séculos, ao qual gerações de compositores, instrumentistas e teóricos de diversas épocas e lugares contribuíram individualmente ao longo do tempo. Tal processo foi um fenômeno ímpar na História.

O sistema de notação musical ocidental é um dos grandes legados civilizacionais da Humanidade.


Fonte: Maestro Tom Martins