segunda-feira, 13 de março de 2017

Os Estudos Musicais e a Educação do Ouvido



[Émile Jaques-Dalcroze, 1898]

Inutilidade dos estudos de harmonia desprovidos da aquisição ou da prévia utilização da audição ''interior'' - Necessidade de cultivar as faculdades auditivas dos harmonistas - Natureza dos exercícios conhecidos como ''desenvolvimento do ouvido'' - Perigos da realização de estudos especializados e, particularmente, de estudos de piano não acompanhados por estudos gerais - O papel das faculdades táteis e motoras na educação musical - Sensibilidade para elaboração de exercícios específicos destinados a regular e desenvolver o temperamento.
Um dos preceitos favoritos dos mestres de harmonia é o seguinte: ''Não se deve jamais utilizar seu instrumento para construir e escrever as sucessões de acordes''. Fiel à tradição, apliquei-me em repetir esse axioma durante as minhas aulas, até o dia em que um dos meus alunos perguntou-me com ingenuidade: ''Mas, senhor, por que eu dispensaria o piano, uma vez que sem ele eu não sou capaz de ouvir coisa alguma?''. Subitamente começou a vibrar, dentro de mim, uma centelha de verdade. Compreendi que toda regra que não tenha sido forjada pela necessidade e através da observação direta da natureza é arbitrária e falsa, e a proibição da utilização do piano não teria o menor sentido, a não ser que ela fosse destinada a jovens dotados de uma audição interior. As sensações táteis podem, em certa medida e em alguns casos, substituir as sensações auditivas: conhecemos compositores que possuem faculdades auditivas incompletas, mas conseguem escrever interessantes obras, compostas, como se diz, no piano. Eles seguramente só puderam estudar harmonia, negligenciando a observação da lei suprema, pois seria impossível escrever com precisão as sucessões de acordes sem dispor de um ouvido interior que lhes fornecesse o eco antecipado de suas ressonâncias. Ou uma coisa ou outra: ou é preciso compor com o auxílio do piano, se não dispusermos de um ouvido musical, ou é necessário dispensar o piano, se formos capazes de ouvir. Ao imporem aos seus alunos a obrigatoriedade de escrever as harmonias sem o amparo de um instrumento, os professores têm, portanto, como dever, despertar nos estudantes o sentido auditivo musical e desenvolver neles o sentimento melódico, tonal e harmônico com o auxílio de exercícios especiais.
Existem exercícios desse gênero? Esses exercícios são ensinados nas escolas de música? Essas foram as perguntas que eu me fiz inicialmente e que me esforçava em solucionar, escavando nas bibliotecas e consultando os programas de ensino dos Conservatórios. A resposta foi: ''não, não existem procedimentos pedagógicos destinados a reforçar as faculdades auditivas dos musicistas e não há nenhuma escola de música preocupada em analisar o papel dessas faculdades nos estudos musicais''.
Entendamos com clareza: existem, com toda certeza, numerosos livros nos quais são prescritos muitos exercícios de leitura à primeira vista, de transposição, de escrita e, mesmo, de improvisação vocal. No entanto, todos eles podem ser realizados sem o auxílio da audição; os exercícios de leitura e improvisação podem ser realizados com o auxílio do sentido muscular e os exercícios de transposição e escrita, com o auxílio do sentido visual. Nenhum deles é diretamente dirigido ao ouvido e, todavia, é através do canal auditivo que as vibrações sonoras são registradas em nosso cérebro. Não seria insensato ensinar música sem se preocupar em diversificar, graduar e combinar, em todas as suas nuances, as escalas de sensações que despertam em nossa alma os sentimentos musicais? Como é possível que o ensino atual de música não leve em consideração a qualidade principal que caracteriza o músico?
Apliquei-me, portanto, a inventar exercícios destinados a reconhecer a altura dos sons, a medir os intervalos, a escrutar os sons harmônicos, a individualizar as diversas notas dos acordes, a seguir os desenhos contrapontísticos das polifonias, a diferenciar as tonalidades, a analisar as relações entre as sensações auditivas e as sensações vocais, a desenvolver as qualidades receptivas do ouvido e - graças a uma ginástica de um novo gênero destinada ao sistema nervoso - a criar, entre o cérebro, o ouvido e a laringe, correntes necessárias para fazer do organismo, como um todo, algo que pudesse ser denominado ouvido interior. Ingenuamente eu imaginei que bastaria inventar esses exercícios para que eles fossem aplicados nas aulas especiais!...
Infelizmente, as dificuldades com as quais eu me deparei ao tentar construir um sistema destinado ao desenvolvimento auditivo não eram nada, comparadas àquilo que encontrei ao tentar introduzir esse sistema nos programas de ensino. Os grandes argumentos contra sua introdução eram que o verdadeiro musicista deveria possuir naturalmente as qualidades necessárias ao exercício de sua arte; e que o estudo não poderia substituir os dons naturais. Por outro lado, o tempo de estudos, já muito limitado, tornava impossível, ao que parece, atrapalhar os alunos com novos estudos que os impedissem de dedicar-se aos exercícios de técnica para os dedos. Além disso, ''os estudos instrumentais eram suficientes para formar um bom músico'', etc., etc. Alguns desses argumentos eram aparentemente justos, e é evidente que somente deveriam consagrar-se à arte musical os indivíduos particularmente dotados, isto é, aqueles que possuíssem, digamos, de modo natural, as qualidades necessárias de reconhecimento dos sons, tais como sensibilidade dos nervos e elevação dos sentimentos, sem as quais não existe um músico perfeito. Mas, enfim, o fato de que as aulas de instrumento estão repletas de indivíduos incapazes de ouvir ou de escutar música permite-nos constatar que os conservatórios admitem ser possível, mesmo aos que não são músicos natos, cantar ou tocar piano!
Ora, qual a razão para ocupar-se unicamente da instrução dos dedos desses alunos, esquecendo-se de sua educação auditiva?
Em relação aos bons músicos, dedicados aos estudos de composição ou de direção orquestral, não é possível supor que exercícios cotidianos de discernimento dos graus de intensidade e altura dos sons; de análises sensoriais dos timbres e de suas combinações; de polifonias e harmonias em todos os graus da escala sonora pudessem tornar seus ouvidos ainda mais refinados e sua inteligência musical ainda mais flexível?
O estilo musical varia de acordo com o clima e a latitude e, por conseguinte, de acordo com os temperamentos impregnados pelos ambientes e resultantes, assim, das condições de vida. As divergências de harmonia e movimento que caracterizam a música dos diferentes povos derivam, portanto, do estado nervoso e muscular de cada organismo, independentemente de suas faculdades auditivas. Nos estudos musicais, não seria conveniente dedicar uma atenção especial às faculdades motoras dos alunos; ao conjunto de reações, impulsos, de pausas e recuos, de movimentos espontâneos e movimentos deliberados que constituem o temperamento? Muitas vezes fiquei surpreso ao observar a dificuldade das crianças pequenas para acompanhar, andando, uma música muito lenta; realizar paradas ou partidas bruscas, conforme o comando; descontrair seus membros, ao sentirem medo; orientar ou combinar seus movimentos de braços, quando lhes ensinamos os gestos de uma canção. Tanto tempo se passa entre a vontade de movimentar-se e a possibilidade de realizar esse movimento, que não é de espantar que tantas pequenas laringes sejam inábeis; tantas cordas vocais se apresentem pouco flexíveis e pouco precisas; tantas respirações sejam mal reguladas nos exercícios de canto e também na maneira de escandir e dividir o tempo e de emitir a nota no momento justo. Portanto, não apenas o ouvido e a voz da criança deveriam ser exercitados, mas também tudo aquilo que, em seu corpo, coopera com os movimentos ritmados, tudo aquilo que, músculos e nervos, vibra, contrai-se e descontrai-se sob a ação de impulsos naturais.
Não seria, então, possível criar novos reflexos; empreender uma educação dos centros nervosos; acalmar os temperamentos agitados demais; regular os antagonismos e harmonizar as sinergias musculares; estabelecer comunicações mais diretas entre os sentidos e a mente, entre as sensações que provocam a inteligência e os sentimentos que recriam meios sensoriais de expressão? Todo pensamento é a interpretação de um ato. Uma vez que, até hoje, tem sido suficiente oferecer à mente a consciência do ritmo graças unicamente às experiências musculares da mão e dos dedos, não lhe comunicaríamos impressões muito mais intensas se fizéssemos colaborar o organismo inteiro em experiências que lhe despertassem a consciência tátil-motriz? Ponho-me a sonhar com uma educação musical na qual o próprio corpo desempenharia o papel de intermediário entre os sons e o pensamento e tornar-se-ia o instrumento direto de nossos sentimentos - em que as sensações do ouvido se tornariam mais fortes, graças àquelas provocadas pelas múltiplas matérias suscetíveis de vibrar e ressoar em nós: a respiração dividindo os ritmos das frases e as dinâmicas musculares traduzindo as dinâmicas que ditam as emoções musicais.

Assim, na escola, a criança não só aprenderia a cantar e a escutar com precisão e no compasso, mas aprenderia também a mover-se e a pensar de modo preciso e ritmicamente. Começaríamos por regular o mecanismo do andar, aliando os movimentos vocais aos gestos de todo o corpo. E isso seria, ao mesmo tempo, uma instrução para o ritmo e uma educação e pelo ritmo.
Infelizmente, quando penso nas dificuldades que tenho atualmente para convencer os educadores musicais sobre a possibilidade de exercícios cujo objetivo seja ensinar a criança a escutar as sonoridades antes de executá-las e registrá-las graficamente e a despertar o pensamento antes de empreender sua tradução, eu me pergunto: a educação dos centros motores será possível um dia? Os homens recusam toda proposta nova, quando certas tentativas anteriores lhes proporcionam alguma satisfação e suas mentes habituaram-se a não mais contestar a utilidade delas. Todo ato libertador com o qual consentem parece-lhes definitivo e imutável, e toda verdade futura parece-lhes hoje uma mentira. Todavia, o pensamento humano desenvolve-se pouco a pouco, apesar das resistências; as ideias esclarecem-se; os desejos afirmam-se; os atos multiplicam-se. Um dia, quem sabe, quando os pedagogos vierem a reconhecer universalmente a possibilidade de reforçar os diversos modos de sensibilidade por meio de procedimentos de adaptação, variação e substituição, a educação musical possa apoiar-se menos exclusivamente na análise e mais no despertar das sensações vitais e da consciência dos estados afetivos. Nesse dia, nascerão, por toda parte, métodos fundamentados na cultura da combinação das sensações auditivas e táteis, e eu poderei desfrutar da silenciosa alegria daqueles que puderam proferir, em algum momento doloroso de suas vidas, o eterno ''E pur si muove!''.




sábado, 4 de março de 2017

Preciso estudar Teoria Musical?


Quem participa de alguma rede social, com certeza, já se deparou com comentários e citações sobre grandes personalidades da música que não sabem ler partitura ou não conhecem teoria musical. É realmente incontestável que a música se nutre do sentimento (do feeling), da interpretação do músico. Claro que é perfeitamente possível ser um músico excelente sem nenhum conhecimento teórico sobre música. O problema é que as pessoas que não gostam de teoria musical usam desse argumento para não estudá-la, mas elas estão simplesmente se enganando.
Sejamos realistas, o fato do Jimi Hendrix não saber teoria musical não é, nem de longe, um bom argumento para que não estudemos. Primeiro, porque a teoria musical é um facilitador, ou seja, conhecendo a teoria entendemos os porquês e, portanto, evoluímos com maior velocidade. Segundo, porque 99,99% de nós nunca terá a genialidade de Hendrix, estudando teoria musical ou não.
O fato de Luciano Pavarotti ter dito que aprender música lendo partitura é o mesmo que fazer amor por correspondência, nada tem a ver com uma apologia anti-teoria-musical como muitos gostam de afirmar para justificar sua falta de empenho, e sim, que a música precisa ser sentida, tocada não só com seu instrumento, mas com sua pele, com sua alma. A teoria musical é importante, mas não podemos ser robôs, escravos de um pentagrama ou de uma regra melódica qualquer. Na música, sempre haverá espaço para a ousadia, sempre haverá espaço para que um músico coloque seu olhar, sua interpretação em qualquer música que estiver tocando, seja lendo uma partitura ou não.
Amigo, se você me permitir, gostaria de lhe dar um conselho :
- Estudar ou não estudar teoria musical é uma decisão sua. A teoria musical tão pouco é uma garantia de sucesso no mundo da música, ela é apenas mais uma ferramenta para a evolução musical. Se você resolver estudar, ótimo! Compre um livro, faça um curso, freqüente uma escola, peça a um amigo mais experiente que você para te dar umas dicas.
Se resolver não estudar, ótimo também! "Só não espere milagres".
Como a maioria das coisas na vida da gente, só com esforço e dedicação é que conseguimos alcançar nossos objetivos. Jimi Hendrix, por mais genial que tenha sido, certamente não ficava deitado no sofá esperando sua inspiração chegar...