[Émile Jaques-Dalcroze, 1898]
Inutilidade dos estudos de harmonia desprovidos da aquisição ou da
prévia utilização da audição ''interior'' - Necessidade de cultivar as
faculdades auditivas dos harmonistas - Natureza dos exercícios conhecidos como
''desenvolvimento do ouvido'' - Perigos da realização de estudos especializados
e, particularmente, de estudos de piano não acompanhados por estudos gerais - O
papel das faculdades táteis e motoras na educação musical - Sensibilidade para
elaboração de exercícios específicos destinados a regular e desenvolver o
temperamento.
Um dos
preceitos favoritos dos mestres de harmonia é o seguinte: ''Não se deve jamais
utilizar seu instrumento para construir e escrever as sucessões de acordes''.
Fiel à tradição, apliquei-me em repetir esse axioma durante as minhas aulas,
até o dia em que um dos meus alunos perguntou-me com ingenuidade: ''Mas,
senhor, por que eu dispensaria o piano, uma vez que sem ele eu não sou capaz de
ouvir coisa alguma?''. Subitamente começou a vibrar, dentro de mim, uma
centelha de verdade. Compreendi que toda regra que não tenha sido forjada pela
necessidade e através da observação direta da natureza é arbitrária e falsa, e
a proibição da utilização do piano não teria o menor sentido, a não ser que ela
fosse destinada a jovens dotados de uma audição interior. As sensações táteis
podem, em certa medida e em alguns casos, substituir as sensações auditivas:
conhecemos compositores que possuem faculdades auditivas incompletas, mas
conseguem escrever interessantes obras, compostas, como se diz, no piano. Eles
seguramente só puderam estudar harmonia, negligenciando a observação da lei
suprema, pois seria impossível escrever com precisão as sucessões de acordes
sem dispor de um ouvido interior que lhes fornecesse o eco antecipado de suas
ressonâncias. Ou uma coisa ou outra: ou é preciso compor com o auxílio do
piano, se não dispusermos de um ouvido musical, ou é necessário dispensar o
piano, se formos capazes de ouvir. Ao imporem aos seus alunos a obrigatoriedade
de escrever as harmonias sem o amparo de um instrumento, os professores têm,
portanto, como dever, despertar nos estudantes o sentido auditivo musical e
desenvolver neles o sentimento melódico, tonal e harmônico com o auxílio de
exercícios especiais.
Existem
exercícios desse gênero? Esses exercícios são ensinados nas escolas de música?
Essas foram as perguntas que eu me fiz inicialmente e que me esforçava em
solucionar, escavando nas bibliotecas e consultando os programas de ensino dos
Conservatórios. A resposta foi: ''não, não existem procedimentos pedagógicos
destinados a reforçar as faculdades auditivas dos musicistas e não há nenhuma
escola de música preocupada em analisar o papel dessas faculdades nos estudos
musicais''.
Entendamos
com clareza: existem, com toda certeza, numerosos livros nos quais são
prescritos muitos exercícios de leitura à primeira vista, de transposição, de
escrita e, mesmo, de improvisação vocal. No entanto, todos eles podem ser
realizados sem o auxílio da audição; os exercícios de leitura e improvisação
podem ser realizados com o auxílio do sentido muscular e os exercícios de
transposição e escrita, com o auxílio do sentido visual. Nenhum deles é
diretamente dirigido ao ouvido e, todavia, é através do canal auditivo que as
vibrações sonoras são registradas em nosso cérebro. Não seria insensato ensinar
música sem se preocupar em diversificar, graduar e combinar, em todas as suas
nuances, as escalas de sensações que despertam em nossa alma os sentimentos
musicais? Como é possível que o ensino atual de música não leve em consideração
a qualidade principal que caracteriza o músico?
Apliquei-me,
portanto, a inventar exercícios destinados a reconhecer a altura dos sons, a
medir os intervalos, a escrutar os sons harmônicos, a individualizar as
diversas notas dos acordes, a seguir os desenhos contrapontísticos das
polifonias, a diferenciar as tonalidades, a analisar as relações entre as
sensações auditivas e as sensações vocais, a desenvolver as qualidades
receptivas do ouvido e - graças a uma ginástica de um novo gênero destinada ao
sistema nervoso - a criar, entre o cérebro, o ouvido e a laringe, correntes
necessárias para fazer do organismo, como um todo, algo que pudesse ser
denominado ouvido interior. Ingenuamente eu imaginei que bastaria inventar
esses exercícios para que eles fossem aplicados nas aulas especiais!...
Infelizmente, as dificuldades com as quais eu me deparei ao tentar construir um sistema destinado ao desenvolvimento auditivo não eram nada, comparadas àquilo que encontrei ao tentar introduzir esse sistema nos programas de ensino. Os grandes argumentos contra sua introdução eram que o verdadeiro musicista deveria possuir naturalmente as qualidades necessárias ao exercício de sua arte; e que o estudo não poderia substituir os dons naturais. Por outro lado, o tempo de estudos, já muito limitado, tornava impossível, ao que parece, atrapalhar os alunos com novos estudos que os impedissem de dedicar-se aos exercícios de técnica para os dedos. Além disso, ''os estudos instrumentais eram suficientes para formar um bom músico'', etc., etc. Alguns desses argumentos eram aparentemente justos, e é evidente que somente deveriam consagrar-se à arte musical os indivíduos particularmente dotados, isto é, aqueles que possuíssem, digamos, de modo natural, as qualidades necessárias de reconhecimento dos sons, tais como sensibilidade dos nervos e elevação dos sentimentos, sem as quais não existe um músico perfeito. Mas, enfim, o fato de que as aulas de instrumento estão repletas de indivíduos incapazes de ouvir ou de escutar música permite-nos constatar que os conservatórios admitem ser possível, mesmo aos que não são músicos natos, cantar ou tocar piano!
Infelizmente, as dificuldades com as quais eu me deparei ao tentar construir um sistema destinado ao desenvolvimento auditivo não eram nada, comparadas àquilo que encontrei ao tentar introduzir esse sistema nos programas de ensino. Os grandes argumentos contra sua introdução eram que o verdadeiro musicista deveria possuir naturalmente as qualidades necessárias ao exercício de sua arte; e que o estudo não poderia substituir os dons naturais. Por outro lado, o tempo de estudos, já muito limitado, tornava impossível, ao que parece, atrapalhar os alunos com novos estudos que os impedissem de dedicar-se aos exercícios de técnica para os dedos. Além disso, ''os estudos instrumentais eram suficientes para formar um bom músico'', etc., etc. Alguns desses argumentos eram aparentemente justos, e é evidente que somente deveriam consagrar-se à arte musical os indivíduos particularmente dotados, isto é, aqueles que possuíssem, digamos, de modo natural, as qualidades necessárias de reconhecimento dos sons, tais como sensibilidade dos nervos e elevação dos sentimentos, sem as quais não existe um músico perfeito. Mas, enfim, o fato de que as aulas de instrumento estão repletas de indivíduos incapazes de ouvir ou de escutar música permite-nos constatar que os conservatórios admitem ser possível, mesmo aos que não são músicos natos, cantar ou tocar piano!
Ora,
qual a razão para ocupar-se unicamente da instrução dos dedos desses alunos,
esquecendo-se de sua educação auditiva?
Em relação aos bons músicos, dedicados aos estudos de composição ou de direção orquestral, não é possível supor que exercícios cotidianos de discernimento dos graus de intensidade e altura dos sons; de análises sensoriais dos timbres e de suas combinações; de polifonias e harmonias em todos os graus da escala sonora pudessem tornar seus ouvidos ainda mais refinados e sua inteligência musical ainda mais flexível?
Em relação aos bons músicos, dedicados aos estudos de composição ou de direção orquestral, não é possível supor que exercícios cotidianos de discernimento dos graus de intensidade e altura dos sons; de análises sensoriais dos timbres e de suas combinações; de polifonias e harmonias em todos os graus da escala sonora pudessem tornar seus ouvidos ainda mais refinados e sua inteligência musical ainda mais flexível?
O
estilo musical varia de acordo com o clima e a latitude e, por conseguinte, de
acordo com os temperamentos impregnados pelos ambientes e resultantes, assim,
das condições de vida. As divergências de harmonia e movimento que caracterizam
a música dos diferentes povos derivam, portanto, do estado nervoso e muscular
de cada organismo, independentemente de suas faculdades auditivas. Nos estudos
musicais, não seria conveniente dedicar uma atenção especial às faculdades
motoras dos alunos; ao conjunto de reações, impulsos, de pausas e recuos, de
movimentos espontâneos e movimentos deliberados que constituem o temperamento?
Muitas vezes fiquei surpreso ao observar a dificuldade das crianças pequenas
para acompanhar, andando, uma música muito lenta; realizar paradas ou partidas
bruscas, conforme o comando; descontrair seus membros, ao sentirem medo;
orientar ou combinar seus movimentos de braços, quando lhes ensinamos os gestos
de uma canção. Tanto tempo se passa entre a vontade de movimentar-se e a
possibilidade de realizar esse movimento, que não é de espantar que tantas
pequenas laringes sejam inábeis; tantas cordas vocais se apresentem pouco
flexíveis e pouco precisas; tantas respirações sejam mal reguladas nos
exercícios de canto e também na maneira de escandir e dividir o tempo e de
emitir a nota no momento justo. Portanto, não apenas o ouvido e a voz da criança
deveriam ser exercitados, mas também tudo aquilo que, em seu corpo, coopera com
os movimentos ritmados, tudo aquilo que, músculos e nervos, vibra, contrai-se e
descontrai-se sob a ação de impulsos naturais.
Não
seria, então, possível criar novos reflexos; empreender uma educação dos
centros nervosos; acalmar os temperamentos agitados demais; regular os
antagonismos e harmonizar as sinergias musculares; estabelecer comunicações
mais diretas entre os sentidos e a mente, entre as sensações que provocam a inteligência
e os sentimentos que recriam meios sensoriais de expressão? Todo pensamento é a
interpretação de um ato. Uma vez que, até hoje, tem sido suficiente oferecer à
mente a consciência do ritmo graças unicamente às experiências musculares da
mão e dos dedos, não lhe comunicaríamos impressões muito mais intensas se
fizéssemos colaborar o organismo inteiro em experiências que lhe despertassem a
consciência tátil-motriz? Ponho-me a sonhar com uma educação musical na qual o
próprio corpo desempenharia o papel de intermediário entre os sons e o
pensamento e tornar-se-ia o instrumento direto de nossos sentimentos - em que
as sensações do ouvido se tornariam mais fortes, graças àquelas provocadas
pelas múltiplas matérias suscetíveis de vibrar e ressoar em nós: a respiração
dividindo os ritmos das frases e as dinâmicas musculares traduzindo as
dinâmicas que ditam as emoções musicais.
Assim, na escola, a criança não só aprenderia a cantar e a escutar com
precisão e no compasso, mas aprenderia também a mover-se e a pensar de modo
preciso e ritmicamente. Começaríamos por regular o mecanismo do andar, aliando
os movimentos vocais aos gestos de todo o corpo. E isso seria, ao mesmo tempo,
uma instrução para o ritmo e uma educação e pelo ritmo.
Infelizmente, quando penso nas dificuldades que tenho atualmente para convencer os educadores musicais sobre a possibilidade de exercícios cujo objetivo seja ensinar a criança a escutar as sonoridades antes de executá-las e registrá-las graficamente e a despertar o pensamento antes de empreender sua tradução, eu me pergunto: a educação dos centros motores será possível um dia? Os homens recusam toda proposta nova, quando certas tentativas anteriores lhes proporcionam alguma satisfação e suas mentes habituaram-se a não mais contestar a utilidade delas. Todo ato libertador com o qual consentem parece-lhes definitivo e imutável, e toda verdade futura parece-lhes hoje uma mentira. Todavia, o pensamento humano desenvolve-se pouco a pouco, apesar das resistências; as ideias esclarecem-se; os desejos afirmam-se; os atos multiplicam-se. Um dia, quem sabe, quando os pedagogos vierem a reconhecer universalmente a possibilidade de reforçar os diversos modos de sensibilidade por meio de procedimentos de adaptação, variação e substituição, a educação musical possa apoiar-se menos exclusivamente na análise e mais no despertar das sensações vitais e da consciência dos estados afetivos. Nesse dia, nascerão, por toda parte, métodos fundamentados na cultura da combinação das sensações auditivas e táteis, e eu poderei desfrutar da silenciosa alegria daqueles que puderam proferir, em algum momento doloroso de suas vidas, o eterno ''E pur si muove!''.
Infelizmente, quando penso nas dificuldades que tenho atualmente para convencer os educadores musicais sobre a possibilidade de exercícios cujo objetivo seja ensinar a criança a escutar as sonoridades antes de executá-las e registrá-las graficamente e a despertar o pensamento antes de empreender sua tradução, eu me pergunto: a educação dos centros motores será possível um dia? Os homens recusam toda proposta nova, quando certas tentativas anteriores lhes proporcionam alguma satisfação e suas mentes habituaram-se a não mais contestar a utilidade delas. Todo ato libertador com o qual consentem parece-lhes definitivo e imutável, e toda verdade futura parece-lhes hoje uma mentira. Todavia, o pensamento humano desenvolve-se pouco a pouco, apesar das resistências; as ideias esclarecem-se; os desejos afirmam-se; os atos multiplicam-se. Um dia, quem sabe, quando os pedagogos vierem a reconhecer universalmente a possibilidade de reforçar os diversos modos de sensibilidade por meio de procedimentos de adaptação, variação e substituição, a educação musical possa apoiar-se menos exclusivamente na análise e mais no despertar das sensações vitais e da consciência dos estados afetivos. Nesse dia, nascerão, por toda parte, métodos fundamentados na cultura da combinação das sensações auditivas e táteis, e eu poderei desfrutar da silenciosa alegria daqueles que puderam proferir, em algum momento doloroso de suas vidas, o eterno ''E pur si muove!''.